sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Artigo: As superbactérias: o que está verdadeiramente acontecendo?

Dr. Caio Roberto Salvino*

   Recentemente, em diversos jornais de grande circulação, notícias sobre infecções graves pelas chamadas de “superbactérias” foram publicadas, inclusive com diversas mortes causadas por elas.
    Desde então, certo pânico toma conta da população, principalmente dos que tem entes queridos internados em hospitais esperando por uma cirurgia, tratamento ou mesmo observação. Mas quem afinal são essas “superbactérias”? Quem são estes novos vilões?

   Primeiramente, gostaria de dizer que não são nem superbactérias, nem novos e muito menos vilões. São seres vivos, e seres vivos lutam pela sua existência e sobrevivência para a perpetuação da espécie. Assim ocorre desde o princípio.
   Em 1683, um holandês chamado Antonie van Leeuwenhoek, utilizando um microscópio descreve pela primeira vez o que possivelmente seriam bactérias. A observação era de um esfregaço feito do resíduo de seus dentes, onde descreveu formas bacilares. De água parada e outras amostras, descreveu diversas formas conhecidas pelos atuais microbiologistas: bacilos, cocos, espiroquetas, flagelados de vida livre, etc. Eram os “animalículos”

   Já a palavra “bactéria” foi introduzida em 1828 pelo microbiologista alemão Christian Gottfried Ehremberg, e é derivada da palavra grega BACTNPIOV, que significa “bastões pequenos ou bastonetes”, pois era o que ele havia observado naquele momento.
   De lá para cá os grandes gênios da microbiologia vieram e nos encheram de informações com suas brilhantes pesquisas, e dentre eles podemos destacar Louis Pasteur (inúmeros prêmios e homenagens), Heinrich Hermann Robert Koch (Nobel de Medicina em 1905), que em muito contribuíram nas pesquisas e desenvolvimento de meios de cultura e identificação das bactérias e Alexander Fleming (Nobel de Medicina em 1945 juntamente com Florey e Chain), o descobridor da penicilina, o primeiro antibiótico a ser utilizado com verdadeiro sucesso.

E aqui, com a descoberta da penicilina, começa verdadeiramente nosso artigo.
   Com a descoberta dos antibióticos e seu uso maciço, as bactérias começaram a desenvolver mecanismos de resistência cada vez mais complexos e perfeitos, deixando à pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica a função de novas descobertas, suprindo a necessidade de antibióticos com espectros de ação cada vez mais ampliados e resistentes à ação das enzimas hidrolisantes dos anéis beta-lactâmicos, até chegarem ao grupo dos Carbapenêmicos, composto principalmente por Imipenem, Meropenem e Ertapenem.

   Enquanto nos hospitais as bactérias foram se tornando resistentes devido à seleção de cepas resistentes causadas primeiramente pelo uso de cefaloporinas de 3ª geração, depois pelas de 4ª geração e posteriormente dos carbapenêmicos, na comunidade as pessoas se automedicam abundantemente favorecidas por uma liberdade comercial nas farmácias e drogarias, muitas vezes induzida ou incentivada pelo balconista, prática essa que denominamos “empurroterapia”. Esta prática é errada em dois momentos: na compra do antibiótico sem orientação médica e na interrupção errônea do tratamento assim que os sintomas (principalmente a dor) desaparecem. Essa interrupção do tratamento, somado ao mau uso dos antibióticos, acarretam em seleção de cepas resistentes na comunidade. É comum hoje isolarmos bactérias resistentes em amostras advindas de pacientes que nunca foram internados em serviços hospitalares.

   A alta velocidade com que nossa microbiota hospitalar e comunitária ficou resistente e o surgimento de novas enzimas produzidas pelas enterobactérias, as beta-lactamases de espectro ampliado (ESBL), fizeram com que o uso dos carbapenêmicos aumentasse em progressão aritmética, ou seja, quanto mais
estas bactérias produziam ESBL, mais se usava um fármaco deste grupo.
   É claro que o resultado final disso foi o surgimento de um novo mecanismo de resistência aos carbapenêmicos: a produção de KPC.

   KPC é uma sigla que, traduzida ao português, quer dizer “Carbapenemase produzida pela Klebsiella pneumoniae”, pois foi nesta bactéria o 1º isolamento e detecção destas enzimas, capazes de hidrolisar o anel carbapenêmico. Esta enzima pode ser produzida por outros microrganismos, mas pelo fato acima,
ganha esse nome.

   A produção de KPC acarreta em resistência a todos os beta-lactâmicos, incluindo nesse caso as penicilinas, cefalosporinas, aztreonam e carbapenêmicos, restando para terapêutica antibacteriana, somente tigeciclina (em alguns casos) e polimixina. Infelizmente o custo do tratamento de um paciente acometido por uma infecção por bactéria produtora de KPC é altíssimo, além da gravidade de seu estado. Lembrar que o Sistema Único de Saúde (SUS) não reajusta suas tabelas de procedimentos desde 1994, ou seja, em um cenário de mais de 300% de inflação no período, os hospitais, clínicas e laboratórios ainda trabalham com tabelas daquele ano. O poder de compra destes prestadores de serviço ao SUS é paciente com infecção por KPC custa de antibiótico ao hospital algo perto de R$ 1200,00 por dia, enquanto o SUS paga diária de menos de R$ 250,00 em UTI. Mas voltemos às KPC.

   A novidade da presença de bactérias produtoras de KPC é relativa ao grupo de bactérias que produz a enzima, pois outras “superbactérias” já são parte da microbiota de nossos hospitais, causando surtos importantes há anos. São exemplo as Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii panresistentes, os Enterococcus sp. Resistentes à vancomicina, os Staphylococcus aureus resistentes intermediários à vancomicina, etc. Os mecanismos de resistência apresentados por estas bactérias são distintos uns dos outros e relativos ao grupo específico de fármacos-alvo. Portanto, bactérias panresistentes já são parte do nosso dia a dia nos hospitais e laboratórios clínicos.

   É fato que os hospitais são colonizados por microrganismos e que isso acarreta em risco aos pacientes e profissionais de saúde envolvidos no processo como um todo. Também é fato que pacientes que recebem alta e estes profissionais podem ser colonizados por essas bactérias e estas, por sua vez, passarem a fazer parte de suas microbiotas. Isso ocorre com outras bactérias também, como a Salmonella, por exemplo. É o chamado “portador são”.

   Não podemos esquecer que o corpo humano é um ecossistema, e este composto por, além de outros microrganismos, bactérias. Trilhões delas. É claro que nesta imensa população, existem seres que levam consigo genes de resistência a um, dois ou diversos antibióticos, e que se comunicam passando informações uns aos outros e tornando esta população cada vez mais resistente, principalmente se a pessoa fizer o mau uso dos antibióticos, pois isto destrói aos poucos sua microbiota selvagem (sensível aos antibióticos) e prevalecendo a população resistente.
 
Mas afinal, todos corremos riscos?
    Em teoria sim, mas na prática nem todos. Quem corre riscos mesmo é o paciente já acometido pela infecção.
   Os profissionais da saúde, quando em perfeitas condições de saúde, não sofrem riscos de infecções por esses agentes, mas devem tomar precauções básicas como uso de equipamentos de proteção individual, lavagem correta e frequente das mãos, etc. Dessa forma, o risco é mínimo e reduz a taxa de transmissão leito a leito.
    Pacientes infectados deverão ser isolados e mantidos sob cuidados especiais por parte da enfermagem, corpo clínico e serviços de saúde como laboratório, imagem, etc.

Mas o que fazer? Como sobreviver a estes poderosos e invisíveis vilões?
    Primeiramente, temos que respeitá-las como seres vivos que são, e entender que lutam pela sobrevivência da espécie. Desta forma, sempre haverá batalhas entre bactérias e fármacos, na intenção de resistir bravamente aos ataques sofridos e dar continuidade a uma história de quase 4 bilhões de anos. Habitamos o planeta há pouco mais de 200.000 anos, e isso sem sombra de dúvidas nos mostra com quem estamos lidando. A visão tem que ser outra. Menos ataque, mais convivência, afinal, elas são especialistas em permanecer por aqui mesmo sob muita pressão.

   E neste caso, conviver significa cuidar. A ausência do hábito de higienizar as mãos antes e depois de atender ou examinar um doente é comum em nossos serviços hospitalares. As comissões de controle de infecção hospitalar (CCIHs) são vista como os “chatos” do hospital, o comitê da chatice, como já vi e ouvi diversas vezes. Corpo clínico e enfermagem que se colocam acima da regra e do bom senso e desrespeitam as normas de controle de infecção e de controle do uso dos antibióticos também são figuras comuns em nosso meio. Profissionais de saúde que entram e saem dos CTIs com descaso às orientações da CCIH, visitas aos doentes fora dos horários por diversos motivos, dentre outros, são problemas graves, de absoluta falta de respeito com o ser humano que está diante destes profissionais. Visitas em centros de terapia intensiva devem ser monitoradas e orientadas, e nunca mais de uma pessoa por leito. Todos devem obedecer às regras estipuladas pelas CCIHs, e os diretores dos hospitais por sua vez, devem apoiar abertamente estas comissões que trabalham arduamente para que nossos doentes sejam cada vez menos expostos a estes microrganismos tão temidos.

   Quanto aos laboratórios de microbiologia clínica que atendem aos hospitais, estes deverão buscar capacitação no sentido de identificar as bactérias e realizar o antibiograma com excelência, além de interpretar corretamente os resultados obtidos e, se necessário for, determinar fenotipicamente qual mecanismo de resistência está se manifestando. Uma confirmação genotípica em serviços de referência também se faz necessária.

   O contato com o clínico é fundamental, e preferencialmente deverá ser constante principalmente em casos de perfis alterados de sensibilidade. Sugerem-se alertas junto aos laudos de antibiograma, para que chamem a atenção do clínico de que se trata de uma bactéria mais agressiva, para a qual os esquemas terapêuticos clássicos não funcionam. Estes alertas podem ser explicativos a respeito do mecanismo de resistência em questão, trazendo inclusive referências na literatura. O laboratório deverá liberar laudos parciais e intermediários, como resultados de bacterioscopias e crescimentos nos meios de cultura.

   O trabalho não para por aqui. As sociedades científicas também têm sua importância no contexto educacional. Programas de educação continuada são fundamentais para os profissionais de saúde.
   Damos como exemplo o programa patrocinado pela Sociedade Brasileira de Análises Clínicas – o SBAC e-Learning – de educação continuada à distância, através do qual milhares de profissionais analistas clínicos se mantêm atualizados sem sair de seus laboratórios e até mesmo de suas casas. Ao mesmo tempo, as regionais da SBAC têm oferecido cursos presenciais de capacitação técnica que, somados aos realizados à distância, preparam os analistas clínicos para o enfrentamento dos obstáculos do dia a dia. Assim devem agir as sociedades envolvidas no contexto do problema.

   O problema existe, e é irreversível. Não podemos simplesmente desprezar a realidade e continuar com as mesmas atitudes. Mudanças radicais dos hábitos, treinamento e capacitação dos profissionais de saúde e melhor orientação aos parentes dos doentes internados se fazem cada vez mais necessárias.
   Junto a isso, valorização das comissões e serviços de controle de infecção hospitalar e comissões pelo uso racional dos antibióticos é fundamental, pois do controle das infecções e do uso dos antibióticos depende o sucesso da redução dos índices dos nossos hospitais.
    Na sociedade, devemos lutar juntos por um controle nacional do uso dos antibióticos, pois seu mau uso e/ou uso descontrolado vem causando, e causará cada vez, mais resistência bacteriana.
Tarja preta nos antibióticos já!

* Dr. Caio Roberto Salvino é farmacêutico-bioquímico Especialista em Análises Clínicas, Fisiologia Humana e Microbiologia Clínica. Microbiologista clínico e Diretor do Laboratório Saldanha em Lages-SC. Professor de cursos de pós-graduação em Microbiologia Clínica e Análises Clínicas em cursos vinculados à Universidades, Sociedade Brasileira de Análises Clínicas e Conselho Federal de Farmácia em diversos estados da União. É consultor nas áreas de controle de infecção hospitalar, análises clínicas e microbiologia clínica. Na SBAC, é coordenador nacional do programa SBAC e-Learning e presidente da SBAC Regional de Santa Catarina.
 

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